Page 58 - Centenário Sophia AEAV
P. 58

— Gertrudes, ouve uma coisa — disse Joana.

                   A Gertrudes levantou a cabeça e parecia tão assada como os perus.
                   — O que é? — perguntou ela.

                   — Que presentes é que achas que eu vou ter?

                   — Não sei — disse Gertrudes — não posso adivinhar.
                   Mas Joana tinha a maior confiança na sabedoria de Gertrudes e por isso continuou a

            fazer perguntas.

                   — E achas que o meu amigo vai ter muitos presentes?
                   — Qual amigo? — disse a cozinheira.

                   — O Manuel.
                   — O Manuel não. Não vai ter presentes nenhuns.

                   — Não vai ter presentes nenhuns!?
                   — Não — disse a Gertrudes abanando a cabeça.

                   — Mas porquê, Gertrudes?

                   — Porque é pobre. Os pobres não têm presentes.
                   — Isso não pode ser, Gertrudes.

                   — Mas é assim mesmo — disse a Gertrudes fechando a tampa do forno.
                   Joana ficou parada no meio da cozinha. Tinha compreendido que era «assim mesmo».

                   Porque ela sabia que a Gertrudes conhecia o mundo. Todas as manhãs a ouvia discutir
            com o homem do talho, com a peixeira e com a mulher da fruta. E ninguém a podia enganar.

            Porque  ela  era  cozinheira  há  trinta  anos.  E  há  trinta  anos  que  ela  se  levantava  às  sete  da

            manhã e trabalhava até às onze da noite. E sabia tudo o que se passava na vizinhança e tudo
            o  que  se passava  dentro  das  casas  de toda  a  gente.  E  sabia  todas  as notícias,  e  todas  as

            histórias das pessoas. E conhecia todas as receitas de cozinha, sabia fazer todos os bolos e

            conhecia  todas  as  espécies  de  carnes,  de  peixes,  de  frutas  e  de  legumes.  Ela  nunca  se
            enganava. Conhecia bem o mundo, as coisas e os homens.

                   Mas o que a Gertrudes tinha dito era esquisito como uma mentira. Joana ficou calada a
            cismar no meio da cozinha.

                   De repente abriu-se a porta e apareceu uma criada que disse:
                   — Já chegaram os primos.

                   Então Joana foi ter com os primos.

                   Daí a uns minutos apareceram as pessoas grandes e foram todos para a mesa.
                   Tinha começado a festa do Natal.

                   Havia no ar um cheiro de canela e de pinheiro. Em cima da mesa tudo brilhava: as velas,
            as facas, os copos, as bolas de vidro, as pinhas doiradas. E as pessoas riam e diziam umas às

            outras: «Bom Natal». Os copos tilintavam com um barulho de alegria e de festa. E vendo tudo
            isto Joana pensava:
   53   54   55   56   57   58   59   60   61   62   63