Page 59 - Centenário Sophia AEAV
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— Com certeza que a Gertrudes se enganou. O Natal é uma festa para toda a gente.

            Amanhã o Manuel vai-me contar tudo. Com certeza que ele também tem presentes.
                   E consolada com esta esperança Joana voltou a ficar quase tão alegre como antes.

                   O jantar do Natal era igual ao de todos os anos.

                   Primeiro veio a canja, depois o bacalhau assado, depois os perus, depois os pudins de
            ovos, depois as rabanadas, depois os ananases.

                   No fim do jantar levantaram-se todos, abriu-se de par em par a porta e entraram na sala.

            As luzes elétricas estavam apagadas. Só ardiam as velas do pinheiro.
            (…)

                   E  no  presépio  as  figuras  de  barro,  o  Menino,  a  Virgem,  São  José,  a  vaca  e  o  burro,
            pareciam continuar uma doce conversa que jamais tinha sido interrompida. Era uma conversa

            que se via e não se ouvia.
                   Joana olhava, olhava, olhava.

                   Às vezes lembrava-se do seu amigo Manuel.

            (…)
                   E Joana foi à cozinha. Era a altura boa para falar com a Gertrudes.

                   — Bom Natal, Gertrudes — disse Joana.
                   —  Bom  Natal  —  respondeu  a  Gertrudes.  Joana  calou-se  um  momento.  Depois

            perguntou:
                   — Gertrudes, aquilo que disseste antes do jantar é verdade?

                   — O que é que eu disse?

                   —  Disseste  que  o  Manuel  não  ia  ter  presentes  de  Natal  porque  os  pobres  não  têm
            presentes.

                   — Está claro que é verdade. Eu não digo fantasias: não teve presentes, nem árvore do

            Natal, nem peru recheado, nem rabanadas. Os pobres são os pobres. Têm a pobreza.
                   — Mas então o Natal dele como foi?

                   — Foi como nos outros dias.
                   — E como é nos outros dias?

                   — Uma sopa e um bocado de pão.
                   — Gertrudes, isso é verdade?

                   — Está claro que é verdade. Mas agora era melhor que a menina se fosse deitar porque

            estamos quase na meia-noite.
                   — Boa noite — disse Joana. E saiu da cozinha.

                   Subiu a escada e foi para o seu quarto. Os seus presentes de Natal estavam em cima
            da cama. Joana olhou-os um por um. E pensava:

                   — Uma boneca, uma bola, uma caixa de tintas e livros. São tal e qual os presentes que
            eu queria. Deram-me tudo o que queria. Mas ao Manuel ninguém deu nada.
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